terça-feira, outubro 24, 2006

O discurso do chefe

E

ra o dia em que o chefe ia fazer um discurso. Estava toda a gente à espera. Na vila, todos falavam disso, antecipando o possível tema, o que diria o chefe acerca dos problemas que todos sentiam, que lhes afectavam a vida de todos os dias, que lhes hipotecavam o futuro. O que será que iria sair da boca do chefe? Era essa a maior preocupação. Teria aquilo ponta por onde se pegasse? É que, no passado, o chefe já tinha discursado algumas vezes e se, numa ou noutra vez, casos raros, tinha tido algum interesse, na maior parte dos discursos não falara sobre nada de importante, nada que se visse, enfim.

À hora marcada, a sala estava apinhada. Estavam todos à espera do chefe. E do discurso. E do tema. E das consequências. É que podia haver consequências do discurso do chefe. Nunca se sabia. Afinal, era o chefe. E chefe é chefe e pronto. É preciso ouvi-lo. Ainda por cima, se não aparecessem, havia de haver quem reparasse na ausência e, se uma pessoa falta, mesmo no meio de uma multidão, mesmo que esta não seja tão numerosa quanto isso, pode ser notada. E acabar por ir parar ao meio da rua. O chefe não é para brincadeiras. Para dar mais ênfase à situação, havia duas câmaras de vídeo que iam filmar toda a reunião. Uma virada para o palco de onde o chefe ia falar e uma outra para a audiência. Por isso mais valia estar do que não estar. Era preferível jogar pelo seguro. Quem está prevenido...

Quando o chefe entrou, com um ar severo, o burburinho que havia na sala terminou de súbito. Era preciso respeito pelo chefe. Caso contrário, podia haver repercussões. E das desagradáveis.

O chefe retirou os óculos e colocou-os sobre o nariz, depois extraiu algumas folhas de papel do bolso interior do casaco, desdobrou-as, endireitou-as sobre a mesa atrás da qual se havia sentado, deu dois goles no copo de água estrategicamente colocado à sua direita, pigarreou para aclarar a voz e olhou para a assistência por cima dos óculos. O chefe ia falar.


- Companheiros e companheiras, não é por ser vosso chefe que me encontro aqui hoje. Mas sim por ser um amigo, um amigo mais sábio, mais velho, mais conhecedor do mundo do que todos vós. É por essa mesma razão que também vos posso aconselhar, com a pretensão de que estes meus conselhos não sejam em vão, que tenham alguma utilidade prática para as vossas vidas.

»Eu bem sei que alguns dos aqui presentes começarão a pensar que se trata única e simplesmente de argumentos que nada têm de novo, que nada disto poderá servir alguma finalidade. Mas muito claramente gostaria de aqui deixar dito que não têm razão. Se há alguma coisa que um chefe pode saber é como tratar de tudo e de todos. Mas também gostaria de vos dizer que, se um chefe erra, o seu erro é maior, porque é mais responsável, e é por isso que um chefe não deve nem pode errar. Porque erros desses pagam-se caro. E afectam muito gente.

»É bom que se diga que um chefe não é Deus, nem nada que se pareça. Não tem nem a infalibilidade nem a omnipotência. Houve tempos em que assim era. Que um chefe tinha até poder de vida ou de morte sobre os seus súbditos. Mas hoje em dia um chefe não tem súbditos. Tem apenas quem trabalhe para si, e nessas horas tem o poder de mandar, de orientar o trabalho de quem dele recebe o ordenado, é por isso que é chefe, mas apenas isso.

»Não pensem por isso em mim como alguém que quer, pode e manda. Isso eram coisas de outros tempos. Um chefe, nos nossos dias, tem mais responsabilidades, muitas responsabilidades, para vos dizer a verdade. Até mais do que as que gostaria de ter. Das suas decisões depende o sucesso de todos, do seu saber e da sua experiência decorre a possibilidade de todos continuarem a ter um trabalho e a receberem o seu ordenado.

»A sua vida é cheia de pressão, e é preciso saber controlar os nervos e agir para o bem de todos. E é isso que é um chefe.