As pessoas
Afirmamos solenemente que qualquer pessoa é capaz de qualquer coisa. Ou até de muitas coisas. As pessoas acordam, lavam-se ou nem por isso, comem qualquer coisa ou nem isso, dão umas voltas quando podem, voltam a comer ou nem isso e depois dormem outra vez. As capacidades inerentes a qualquer pessoa são muitas, e as coisas que fazem são diversificadas.
Vejamos por exemplo a idade: qualquer pessoa tem um ou mais anos. Algumas têm quase um. Há inclusive outras que têm anos demais. E são dignos de referência os casos de idade da infância, da primeira e da segunda, da idade da adolescência, da meia-idade, e da terceira idade. Temos pessoas para cada uma delas. As pessoas consideram que há idades melhores e idades piores, mas trata-se apenas de um ponto de vista e as opiniões sobre este assunto são absolutamente pessoais e variam de acordo com a idade. Merece ainda ser aqui registado o caso das pessoas que não têm idade.
As pessoas andam de um lado para o outro. Há quem refira que se trata de viajar. Viaja-se a pé, de comboio, de automóvel, de barco, de avião, de bicicleta, de moto, de cadeira de rodas, e também se viaja à conta, embora não seja muito claro o que isto significa, porque não é muito vulgar ver pessoas a contar enquanto andam para a frente e para trás; por outro lado, há quem esteja sempre a contar as viagens que já fez e as que virá a fazer no futuro. Nos últimos tempos têm sido notícia as pessoas que viajam de trotinete. Um dos temas que também preocupa muitas pessoas é a última viagem, embora já nem se lembrem da primeira, e existem muitas empresas apenas vocacionadas para esta viagem, embora haja outras que trabalham com viagens para todo o mundo e a que normalmente as pessoas chamam agências de viagens, não se percebendo muito bem porque também não chamam o mesmo às outras, as da última viagem.
Viaja-se isoladamente, em família, ou isola-se a família e vai-se viajar, o que não deixa de ser uma opção para muitas pessoas, que são capazes da pagar qualquer coisa para ir viajar. Há pessoas que viajam muito e há pessoas que viajam pouco ou nem sequer isso, por isso se diz que haja quem viaje de boca.
Ora bem, esta é uma expressão curiosa. Viajar de boca significará que não se leva a dentadura nas viagens? Ou então que se vai de viagem e se deixa a boca em casa, no seguimento de uma operação plástica? E quando se volta vai-se novamente ao cirurgião para voltar a meter a boca no sítio? Ou leva-se apenas a boca e mais nada? E será também necessário para isso fazer uma operação plástica antes de viajar? Trata-se, pois, de algo que convém esclarecer, porque pelos vistos há muitas pessoas que praticam esta modalidade. Contudo, não nos foi possível recolher testemunhos acerca do assunto, porque quem tinha boca não a quis abrir para contar como foi, nem pretendeu assim recomendar esta prática.
As pessoas também respiram. Umas pessoas respiram mais do que as outras e há pessoas que já não respiram mesmo nada e que outras pessoas levam embora e escondem num sítio qualquer de maneira que já ninguém lhes põe a vista em cima. A estranheza deste caso chamou a nossa atenção, uma vez que ficou claro que há pessoas que escondem outras pessoas, para já não dizer que há pessoas que escondem coisas.
Ultimamente tem sido muito debatida a respiração artificial, ou seja, um artifício para pôr a respirar aquelas pessoas que se recusam terminantemente a fazê-lo. Parece que outra modalidade muito em voga, sobretudo na época balnear, é a respiração boca-a-boca. Embora possa parecer fora do normal, neste tipo de respiração não funciona o nariz, que se sabe ser um apêndice que serve para respirar e para outras coisas, nomeadamente para ser metido onde não deve. Os praticantes de respiração boca-a-boca recusam-se a utilizar o nariz, afirmando ser prejudicial às suas actividades, embora não seja muito claro onde é que o metem quando não o estão a usar, e este conselho poderia ser de grande utilidade para certas pessoas, embora para outras nem por isso.
As pessoas falam, embora nem todas. Também ouvem, mas falam mais do que ouvem, e isto é um fenómeno típico entre certas actividades das pessoas, variando também de acordo com o sexo e a idade. Há quem venda a fala palavra a palavra, há quem venda ao segundo, e há ainda quem utilize certos meios técnicos para se pôr a falar em todo o lado, e quem fale a torto e a direito, não sendo igualmente muito claro o significado deste último tipo de fala, embora nos pareça que as pessoas possam colocar o corpo em várias posições para poderem falar.
As pessoas também conversam. Conversam de tudo e de nada, e há sempre gente a conversar. Mesmo quando não se quer, há sempre pessoas dispostas a isso. Outras ficam indispostas com isso e algumas nem sim nem não. Foram testemunhados diversos casos de pessoas que têm sempre a mesma conversa e de pessoas que não têm conversa nenhuma. A maior parte das conversas não tem interesse nenhum. Interrogadas umas pessoas quaisquer sobre o assunto, foi praticamente unânime a opinião de que as pessoas gostam de ser levadas na conversa, não tendo ficado porém muito claro para onde é que elas eram levadas, muito embora seja inegável que há quem vá na conversa, não estando este meio de transporte entre os que acima referimos a propósito das viagens.
Existe uma regra de ouro a propósito da conversa: não se fala enquanto se mastiga. Mas há muitas pessoas que decidem pura e simplesmente ignorar esta regra, defendendo a liberdade plena das suas acções. Daí que seja comum o atendimento nas urgências hospitalares de casos de pessoas atingidas por arroz, batatas, pedaços de bife ou de peixe frito, bocados de fruta ou de vegetais diversos, e até mesmo por caroços. Talvez se encontre aqui a justificação para as viagens de boca a que já fizemos referência anteriormente, sendo assim viagens dirigidas especificamente aos hospitais. Hoje em dia é moda conversar para um objecto que as pessoas encostam ao ouvido, na esperança de manter a conversa em dia, embora muita gente também o faça de noite.
Com o tempo, as pessoas aprenderam a escrever. Escreve-se em todo o lado, sendo especialmente de bom gosto escrever nas paredes e nos monumentos, que são coisas que as pessoas mandam plantar em certos sítios para se esqueceram delas mais depressa. Escreve-se bem ou mal, conforme as opiniões. Mas escreve-se muito. E depois nem por isso se lê. Mas as pessoas escrevem furiosamente, escrevem furiosas, há pessoas furiosas que escrevem, e há também aquelas que já não escrevem, porque desistiram ou porque pertencem àquele grupo das que foram levadas pelos outros não se sabe bem para onde.
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